por Orlando M. Ferreira
Não tem alguma coisa errada quando começam a queimar os livros? Ora, você diria, não fazem mais essas coisas.
Subindo a Augusta num dia qualquer à tarde, vi um sebo que conhecia de longa data. Agora predominavam CDs, DVDs e vinis, na entrada uma bacia de brochuras em oferta por três reais cada. Mas nas profundezas do lugar, meio escondida por um monte de tábuas, vi uma estante de livros antigos, a maioria edições sisudas com cara de anos 50.
Perguntei se eu podia olhar os livros. Ele disse que não, que os livros não estavam à venda. Saí sem agradecer a rudeza, mas da calçada olhei aquelas lombadas antigas lá no fundo do sebo e resolvi tentar de novo.
Não posso nem dar uma olhada?
Nós não trabalhamos mais com livros. E olha lá, nem dá pra alcançar onde eles estão.
Era verdade, os livros estavam em uma estante alta, depois da multidão de vinis e CDs rigorosamente catalogados.
Inacessíveis.
Mas por que vocês não vendem os livros?
Não trabalhamos mais com livros, disse ignorando as brochuras, só com CDs, DVDs e vinis. Não tem saída. Vai tudo pra reciclagem.
E completou a obra:
É só um monte de livros velhos.
Dei as costas e saí dali com um aperto no peito. A coisa me detonou. Procurei um lugar pra sentar, mas não tinha lugar, então recomecei a subir a Augusta e a feiúra daquilo tudo bateu fundo. As pessoas indo pra lá e pra cá, sem saber o que estava acontecendo, pareciam bonecos representando algum papel numa distopia absurda. O simbólico da coisa era forte demais. Precisava de um lugar pra tirar aquilo de dentro, mas não tinha lugar, então continuei subindo.
Então tentei racionalizar. Ok, é só um negócio. Ele vende CDs e vinis e esses livros velhos não tem saída. Afinal as editoras não queimam milhares de livros encalhados todo ano? Queimam ou reciclam? Ou tanto faz? E lembrei daqueles montes de óculos, sapatos e roupas que vemos nas fotos tiradas em campos de concentração onde pessoas eram recicladas. Os nazis aproveitavam tudo, o ouro dos dentes, o cabelo, as roupas, os sapatos e as jóias que as famílias desesperadas traziam. Pensei também nas fogueiras de livros que fizeram em comemoração à tomada do poder em 33, parte de um projeto de reciclagem da cultura alemã. Aqueles livros também não tinham saída. Porque o trabalho liberta, mas só se tiver saída, senão é o forno e a reciclagem. E isso foi me aturdindo a cachola até o próximo sebo, onde eu esperava encontrar a salvação enquanto se repetia na minha cabeça o mantra diabólico das palavras e a imagem de velhos e crianças sendo enfileirados para a morte.
Vai pra outra fila por favor. A fila de cá fica, a da lá vai pra reciclagem, diria o SS para um Lobato embolorado, junto a um Goethe meio trôpego amparado pela Enciclopédia Universal da Juventude. E depois deles seguiriam milhares de volumes anônimos. Reciclados.
“É só um monte de livros velhos”… Situação realmente absurda e lamentável; por essa lógica, estou ficando velho e logo também serei totalmente descartado!!
Forte comparação dos livros que se reciclam e os judeus que se queimam. Me recordo de um professor da faculdade, com ares de poeta nos guiando pelas ruas do centro referir-se aos moradores de rua como “lixo humano que necessitam ser reciclados”, até hoje me choca recordar estas palavras. Mas eis que há “sentido”, ao menos para um pensamento nazista.