Chutando a escada (ou: seis notas sobre a greve na USP)

por Fabiana Jardim

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  1. Como professora, estou na USP há quatro anos. Na FEUSP, dou aulas na área de sociologia da educação e nos últimos dois anos também tenho oferecido optativas na área de desigualdades, com recorte na experiência brasileira. Digo tudo isso para explicar que embora a crise atual vivida pela USP (por sua profundidade e por todos os aspectos que colocou na mesa) seja em certa medida “inesperada”, quando a gente pensa o presente com relação aos processos de restrição e expansão da educação pública no país, é possível dizer que alguns de seus aspectos já eram visíveis desde antes. E não, não me refiro à questão financeira (que era claramente visível, tanto assim que em 2006 o Conselho dos Reitores das Universidades Estaduais Paulistas – CRUESP já solicitara ao governo do estado o aumento do repasse, a fim de garantir as condições de funcionamento após a expansão de vagas em cursos já existentes e inauguração de novos cursos e novos campi). Refiro-me à questão da legitimidade de uma universidade pública refratária à democratização do acesso e à questão da estrutura de gestão e governança, pois ambas me parecem o centro da crise.
  1. Como aluna – de graduação e pós – estou na USP há dezenove anos. Quando entrei, era o início do governo FHC e a defesa de um modelo outro de educação estava posta na mesa. Os professores, ao menos na FFLCH onde me formei, realizavam um grande número de debates a respeito da universidade, contribuindo imensamente para nossa formação: ali, no embate localizado no presente, as categorias de análise ganhavam vida e era possível ao mesmo tempo se apropriar delas e reconhecer a importância das ciências humanas e sociais. Ao entrar, encontrávamos professores das antigas, cujas aulas – intensas, difíceis, desafiadoras – revelavam uma formação sólida, feita no próprio processo de escolarização formal (para vários, inclusive, feito na escola pública), mas também durante a carreira universitária, na qual se entrava por vezes ainda mestrando, articulando desde o início pesquisa, ensino e extensão. Por isso mesmo, ao entrar e encontrar aquelas figuras, reiterávamos em nossa experiência de estudantes o prestígio e o valor da Universidade de São Paulo.
  1. Já na pós, no mestrado e no doutorado, foi possível perceber como, num pouco a pouco que foi até bastante veloz, esse sentido de universidade foi se transformando. O produtivismo, a preocupação em mudar as regras dos programas para atender às demandas das agências de fomento e avaliação, a valorização crescente da pesquisa e da pós que resulta na graduação restar em segundo plano (como se coisa menor e de menos valor)… tudo isso implica mudanças na formação de novas gerações. Não só durante a graduação, mas no processo de construção da carreira: mestrado e doutorado feitos rapidamente, do processo importando menos os resultados do que a subjetivação que resulta no homo lattes ideal, capaz de gerir sua vida acadêmica de maneira a alimentar constantemente seu currículo. O artesanal da pesquisa, a possibilidade de que os achados provoquem realmente as categorias de análise, enfim: as brechas para um ultrapassamento interessante do próprio campo de pesquisa bem mais estreitas. Com a exigência de internacionalização, então, é melhor desistir de autores ou problemas locais! É claro que tudo isso aqui está exposto de modo muito exagerado, mas o resumo da ópera para efeitos deste post é o seguinte: não seremos jamais como os professores que nos formaram. Nós (ou ao menos parte de nós) sabemos disso. Nossos alunos sabem disso. Essa consciência varia de acordo com o lugar que se ocupa na universidade – há a “alta USP” e a “baixa USP”… e, não à toa, foi pelos cursos da “baixa USP” que a universidade veio cumprindo sua necessária tarefa de democratização do acesso. Vale notar que não me refiro em geral aos cursos de humanas, mas principalmente às licenciaturas várias, noturnas, compostas por estudantes de origens diversas e cuja potência de produzir mudanças na estrutura universitária se vê bloqueada pela ideia de meritocracia que resulta na evasão de um imenso contingente de estudantes. Seu esforço, muitas vezes enorme, de chegar até a USP é descartado com o gesto da nota baixa ou da reprovação que reiteram que ele não pertence àquele espaço.
  1. É a “baixa USP” que sofre as consequências diretas do modelo de expansão do ensino superior adotado nos últimos anos, que mistura público e privado, mas consolidou os interesses de grupos/oligopólios que abrem o maior contingente de vagas justamente em pedagogia e nas licenciaturas. A um custo – financeiro e pessoal – muito mais baixo (pensemos numa cidade como São Paulo, em alguém que trabalha e estuda e tem que chegar até um campus como o Butantã, que só muito recentemente passou a contar com um metrô próximo, mas ainda assim distante de várias unidades), o estudante que mirava na USP e o estudante que nem sequer a considerava entre suas possibilidades encontram um caminho para acessar o ensino superior e conseguir um diploma. A USP perde a capacidade de atração, em especial nesses cursos. Nos últimos anos, quantas chamadas são necessárias para preencher as vagas aí? A “alta USP” sente a pressão pela democratização do acesso e a elabora como ameaça ao prestígio dos cursos e perda no valor do diploma. A “baixa USP” perde parte de sua capacidade de democratização do acesso porque sujeita a uma intensa e injusta competição. Que legitimidade a USP pode ter, então, quando os mais imediatamente interessados em sua existência passam a questionar o seu valor? (Isso, é claro, já dando como suposto o desinteresse do governo do estado em legitimá-la no quadro de uma política mais orgânica de educação: na política eleitoral, é fácil que as decisões tomadas agora não sejam relacionadas a seus efeitos mais tarde, o que significa que no sentido puramente eleitoral, o risco de deixar as universidades paulistas à deriva é mínimo). A crise atual em que estamos mergulhados põe a nu todas essas contradições que nos levaram a não ter, nem para cima, nem para baixo e por vezes nem entre nossos pares, a quem recorrer. Estamos todos um pouco como as personagens de Chapolin Colorado: “e agora, quem poderá nos defender?”.
  1. Numa das reuniões de três setores durante essa greve, uma colega minha que passou pelas três estaduais paulistas ao longo de sua formação, relatou que a universidade em que estudou na graduação não era a mesma em que estudou no mestrado e já era outra nos tempos de seu doutoramento; a questão não era só a mudança, mas o fato de que tais mudanças se deviam a uma piora progressiva das condições de trabalho dos professores e das condições de pesquisa dos pesquisadores em formação. Após essa observação veio o enunciado preciso: nossa greve é para garantir aos colegas que vierem depois de nós condições, senão melhores, ao menos equivalentes às que temos hoje. Para que os estudantes que ingressarem, tenham também a chance de uma educação, senão melhor, ao menos equivalente aos que os antecederam. É um compromisso entre gerações.
  1. Só nessa última nota esclareço o título estranho. Essa formulação “chutando a escada”, tem me perseguido desde o início da greve. É uma referência ao título do livro de Ha Joon Chang, em que ele analisa os mecanismos de proteção que os países desenvolvidos utilizaram para alavancar seu progresso social e econômico e que negam aos países em desenvolvimento: chegam ao topo e chutam a escada para restarem absolutos no lugar mais alto do pódio. A reiterada ideia de que a USP (figurada como metonímia das três estaduais) se encontra em crise é o pé levantado. O duro, duro mesmo, nisso tudo, é que quem tenta chutar a escada foi gente que a usou, que fez sua vida, sua carreira, seu prestígio passando por ela. E agora está lá no Conselho Universitário dizendo sim como se não fosse nada demais, como se seu sim não mudasse toda a arquitetura do jogo. Como se seu sim não derrubasse a escada e, nesse gesto, todos os que se encontram nos seus degraus ou na fila para subi-la.

9 pensamentos sobre “Chutando a escada (ou: seis notas sobre a greve na USP)

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    • Muito obrigada, Márcia: a greve tem sido penosa, mas quem sabe das tantas conversas e das tantas análises a gente encontre uma outra forma de pensar os problemas enfrentados pela USP e abre caminho para ultrapassá-los? Um abraço.

  2. Que bom que gostou, Vanessa! Gosto bastante dessa imagem do “chutando a escada” para falar do bloqueio às possibilidades de melhoria e ascensão. Quando se fala de democratização, talvez chutar a escada nem fosse tão ruim – se isso significasse que não haveria mais desníveis tão gritantes (de poder, de cultura, de renda): ah, que utopia, poder chutar a escada porque ela se tornou desnecessária. Já que não é o caso, lutemos por mantê-la em pé! Um abraço.

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